quarta-feira, setembro 26, 2007

Humor!!!!!

Há 71 anos atrás, no dia 26 de setembro, nascia, em Porto Alegre, um dos maiores cronistas brasileiros, Luis Fernando Veríssimo. Não que ele só escreva crônicas, mas foi através delas que ele trilhou sua popularidade Brasil a fora e adquiriu a maioria de seus leitores, inclusive eu. Sou fãzoca deste conterrâneo capaz de fazer humor como quem escova os dentes, e hoje, no dia de seu aniversário, resolvi homenageá-lo postando aqui uma crônica daquele personagem que é de longe o meu favorito, dentre os muito por ele criados: O Analista de Bagé.


O depoimento do analista de bagé

Existem tantas histórias por aí sobre o analista de Bagé ― suas origens, sua vida particular, seus métodos de trabalho ― que fica difícil separar a lenda da realidade. A sua terapia do joelhaço é, como diz o próprio analista, “mais comentada que vida de manicure”. Já existe, inclusive, uma escola de psicoterapia que adotou o joelhaço, chamado nos Estados Unidos de BSM, ou “Bage Sensitivization Method”, embora o analista advirta que ele só deve ser aplicado por um especialista, “pra não rengueá(1) o vivente(2). Dependendo da versão, o analista tem seu consultório em Bagé mesmo, em Porto Alegre ou no Baixo Leblon. Segundo alguns, ele teria abandonado a profissão e estaria vivendo em Ipanema com uma artista da Globo. Outros dizem que ele se aposentou e vive numa estância de Bagé com sua recepcionista Lindaura ― que agora não recebe mais, só dá ― e se ocupa em contar suas memórias em um livro, quando não está contando seu gado. Onde está, afinal, a verdade? Onde está o analista? Como ele desenvolveu a terapia do joelhaço? Como vive, como ama, o que pensa?

Acho que posso acabar com todas estas dúvidas. Tenho um depoimento do próprio analista de Bagé contando tudo. É verdade que sempre existe o risco desta ser apenas mais uma versão. Mas, como diz o próprio analista, cripticamente, “a verdade é uma mentira que aconteceu”. Ou coisa parecida.

O depoimento do analista começa com um comentário sobre a sua fama de grosso.

“Grosso é o intestino, que vive dando cagada. De grosso só tenho, aqui, o
pirata de barba negra e um olho só(3). Te fresqueia! Tenho é aquela franqueza que já nasce com o bageense, junto com a cuia(4) e as esporas. Digo o que tenho que dizer e o último desaforo que levei pra casa foi a minha mulher.”

Sobre a terapia do joelhaço, ele explica: “Se algum paciente vem com muita história, eu digo logo que lengalenga é conversa de japonês. Gosto de ir direto ao
caroço da questã(5). Foi por isso que desenvolvi a terapia do joelhaço. Sou freudiano de carteirinha assinada. Mais ortodoxo que pijama listrado. Mas gosto de experimentar, porque paciente que cai no meu pelego(6) sai curado nem que ele morra. Eu já tava até os corno de tanta gente se queixando de angústia existencial, da indiferença do universo, do terror do infinito. Meu pai, o velho Adão, sempre me dizia pra não me preocupa com o infinito porque o infinito ficava pra lá de Lavras. Em Bagé não tinha angústia existencial e como em Bagé nunca teve fresco... Fui me enchendo com aquela fileira de desocupados que só pensavam no universo como se o universo fosse tudo. Um dia me entrou um índio com cara de quem preferia não ter nascido e eu não me segurei nas bombacha. Fui lá e lhe apliquei um joelhaço. Bem ali onde tudo começa e tudo se resolve. O índio velho se dobrou como um canivete. Levei ele pro pelego com jeito. Ofereci um mate. Ele disse:

― Aahhnn.

Queria dizer
não se moleste(7). Depois que conseguiu falar, começou aquela cantilena, más chato que padre da colônia(8). Porque era finitude humana, porque era o absurdo da existência, porque era o vazio cósmico, porque a terra não valia nada... Aí eu entesei que nem seminarista no sábado(9).

― Péraí ó
bagual(l0), tu tá falando da minha terra.
― Mas a terra é uma
titica(11) de galinha ― disse ele.
― Titica é tu e galinha é a tua mãe ― argumentei. ― A terra é muito melhor que muito desses planeta que andam se rebolando por aí feito
china de delegado(12). Marte é só pedra. Vênus é um lixo. Saturno tá mais cheio de gás que alemão em fim de kerb(13). A terra tem tudo que um cristão precisa: oxigênio, mulher ancuda, moganga(14) com leite gordo...

Mas o índio não se convenceu. Disse que sentia um aperto na garganta cada vez que pensava no infinito e que aquela era a pior sensação que um vivente podia sentir.

― É pior que fome, desgraçado? ― perguntei. Ele pensou um pouco e disse:
― É.

Ai eu cheguei o banquinho pra perto e perguntei:

― É pior que joelhaço?

Não era. A partir daí ele começou a pensar melhor nas coisas. Abandonou a angústia e decidiu aproveitar a vida. Deu um desfalque na firma e todos os anos me manda um cartão do Taiti. Desde então tenho usado a terapia do joelhaço com sucesso. Só não recomendo com masoquista porque masoquista vai pelo joelhaço, não pra ser curado.

Uma vez, num congresso de psicanalista em Paris ― que é uma espécie de Bagé com metrô ―, me perguntaram de onde tinha saído a idéia do joelhaço e eu contei. Tinha reunido alguns dos maiores psicanalistas do mundo no meu quarto no hotel, feito um fogo de chão e a indiada tava ali, passando a cuia e mentindo más que guri pra entrar em baile. E eu contei a história do meu tio Lautério, que era médico.

Pues cada vez que alguém lá em casa adoecia, chamavam o tio Lautério. Até hoje ninguém sabe direito qual era a especialidade dele, mas era chamado pra tudo, desde mordida até enfarte. Tinha um metodo que simplificava tudo. Pra doença que começava com consoante, receitava lavagem. Pras que começavam com vogal, como angina ou icterícia, receitava emplastro. E dava certo, porque na minha família só se morria de briga em
bolicho(15). Pues um dia eu, que era tão piá(16) que ainda ficava na ponta dos pés pra mijar em penico, tive uma dor de ouvido. Chamaram tio Lautério. Ele chegou e me encontrou chorando. A primeira cosa que disse foi pra me consolá:

― Deixa de ser
veado(17), ó cagão.

Mas tava doendo demais e eu não parei de chorar. Aí ele começou a me dar um beliscão. E perguntava:

― O que tá pior, o ouvido ou o beliscão? E eu berrava:
― É o ouvido! Depois:
― Tá empatado! E depois:
― É o beliscão!

Aí ele apertou mais até que eu gritei:

― Tô com saudade da dor de ouvido!

Me lembrei do tio Lautério quando decidi instituir o joelhaço. Porque a verdade é que tem muito paciente que acha que o umbigo dele é o centro do mundo, quando todo mundo sabe que é Bagé. Então o vivente tá com dinheiro na poupança, come todos os dias, tem uma amante chamada Suzete, e mesmo assim fica remoendo lá dentro, catando angústia como passarinho bicando bosta. Um bom joelhaço sacode as cosa e restabelece as prioridade. Afinal, nestes tempos que estamos atravessando, meio de banda como Aero Willys em lodaçal, quem tem dinheiro pra pagar uma análise devia se envergonhar de procurar um analista. É claro que a psicanálise não tem culpa de ser uma cosa de elite, uma espécie de pólo mental. Não foi ela que fez o mundo assim,
arrevesado(18) barbaridade. Mas quando dá razão a quem diz que tudo tem que ser resolvido lá dentro de cada um, e não a qui fora no social, ela até que é cúmplice. Como dizia o meu pai, o velho Adão: gengiva não morde mas segura os dente.”

Onde é que o analista de Bagé tem seu consultório?

Pues sou bairrista barbaridade. Só sei viver com conterrâneo. No meio de gaúcho me sinto como bebê no peito: tudo que eu preciso tá ali à mão. Gosto de estar rodeado de gaúcho como braseiro de galpão. Por isso moro no Rio de Janeiro. Abri um consultório no Baixo Leblon ― que é um a espécie de Bagé com manobrista ― e tô com uma clientela louca de especial, e especial de louca. Se eu estranhei um pouco a mudança? Bueno, no princípio, me mangueavam as ropa e ficavam olhando pras minha bombacha como se eu tivesse sem. Aí eu ameaçava botar mesmo o pirata pra fora ou sair no
manetaço(19) e a indiada se apeanava. Que mal hay em ir de bombacha à praia? Pra entrar no tal de mar eu só tiro o lenço encarnado, que cosa sagrada não se lava com sal. No meu primeiro dia na praia de Ipanema veio um guasca(20), más cabeludo que o caso do Rio centro, e disse:

― Ó cara, qual é a do narguilé?
― Que narguilé, tchê?
― Não desvia, xará. Deixa eu traga o teu barato que eu tou sem nenhum. Tô puxando até espiral Boa-Noite, falou? Solidariedade, cara. Somos tudo polonês.

Pôs não é que o peludo quis me tirar a cuia da mão, o que pra gaúcho equivale a xingar a mãe e o Bento Gonçalves juntos? Dei-lhe um
trompaço(21) que derrubou gente até o Arpoador, pôs a praia estava cheia.

Tive problemas com a Lindaura. A chinoca me inventa de aparecer no consultório de gins, com o rabo más apertado que as classe de baixa renda. Mandei ela tira as calças ali mesmo e já levei pros pelego, que não posso ver cavalo encilhado ou mulher de bunda solta sem montar. No segundo dia de Rio, a Lindaura já estava chiando feito locomotiva, tchê. Proibi. Na minha terra, mulher que fala chiado ou com erre muito carregado, se não é defeito, é desfrute.

O que dá de
piguancha(22) neste Rio de Janeiro! Teve uma que veio me vê porque nunca tinha tido um orgasmo. Até me perguntou como era. Respondi:

― Sabe quando a água do chuveiro sai fria e a gente chupa a respiração e faz “ohaaãoaaãum”?
― Sei.
― Pos é assim.
― E a gente fica toda molhada?
― Más o menos...

Ela não entendeu a teoria e passamos à prática, que comigo é na paleta. Teve quatro, mas eu só cobrei dois.

No Rio tudo é exagerado. Me apareceu um vivente com o maior complexo de Édipo que eu já vi. O índio velho queria ir pra cama com a mãe e duas tias. Queria dinamitar o pai. O tratamento foi difícil, mas acho que no fim consegui controlar o animal. Na última sessão, fiz um teste, sutilmente.

― Tu quer comer a tua mãe?
― Eu não!
― Tem certeza?
― Tenho.
― Alguma pergunta?
― Tenho.
― Qual?
― Bolinar, pode?

Outro era megalomaníaco. Um gaúcho que também tinha se mudado pro Rio. Chegou dizendo:

― Vou ser governador deste troço.
― Te deita, tchê ― disse eu, tentando controlar minha paciência. A gente tem que agüentar cada um...

Também foi um tratamento difícil barbaridade. Não chegou a terminar. Ele não me apareceu mais. Não sei se este eu domei ou não.

GLOSSÁRIO:
1. Rengueá: Renguear, fazer ficar rengo, manco, como “tava um frio de rengueá sentinela” ou “tava um calor de rengueá sorveteiro”.
2. Vivente: Pessoa. Viva, naturalmente.
3. Pirata de barba negra e um olho só: Imagem obscura, de sentido duvidoso. Talvez uma referência ao lado negativo que todos nós carregamos no íntimo.
4. Cuia: Cabaça que contém o mate do chimarrão.
5. Caroço da questã: Âmago da questão.
6. Pelego: O couro e os pêlos da ovelha, usado no Sul como tapete ou revestimento. Muitos gostam de fazer amor sobre um pelego. É sabido que alguns fazem isto sem tirar o pêlo da ovelha.
7. Não se moleste: Não se incomode.
8. Padre da colônia: Padre da região colonial, italiana ou alemã, do Rio Grande. Seus sermões, se pudessem ser engarrafados, seriam vendidos como estupefacientes.
9. Seminarista no sábado: Referência inexplicável.
10. Bagual: Cavalo arisco.
11. Titica: Fezes de galinha.
12. China de delegado: China de delegado.
13. Alemão em fim de kerb: “Kerbs” são festas realizadas na colônia alemã. Geralmente duram mais de um dia, com grande consumo de cerveja e comida de alta fermentação.
14. Moganga: Um parente próximo da abóbora, mas os dois não se falam.
15. Bolicho: Bar, bodega.
16. Piá: Menino.
17. Veado: Homossexual.
18. Arrevesado: Atravancado, trocado.
19. Manetaço: Um joelhaço com a mão.
20. Guasca: Gaúcho, mas no mau sentido.
21. Trompaço: Joelhaço geral.
22. Piguancha: Puta, no bom sentido.

Um comentário:

Abel disse...

Larissa vim aqui agradecer o seu comentário. Espero que acompanhe a história.
Você tem razão. O Veríssimo é uma das coisas boas que existe nesse nosso país. Por causa dele e de outros como Carlos Drummond, Clarice Lispector, Cecília Meireles e Guimarães Rosa é que sinto orgulho de ser brasileiro.